A Biblioteca

A porta rangeu quando Lucas a empurrou com força. Ao entrarem, o ambiente mudou de imediato. A biblioteca era maior do que o esperado, as suas paredes cobertas por estantes que subiam até ao teto, repletas de livros envelhecidos. O ar estava pesado e seco, cheirava a papel antigo, a conhecimento perdido e, para Isabel, a uma tentação irresistível.

O chão de madeira estalava sob os pés, e cada movimento parecia ecoar nas alturas. No centro da sala, uma grande mesa de madeira estava coberta de manuscritos empoeirados e velas que há muito tinham apagado. Cortinas de veludo vermelho cobriam as janelas altas, bloqueando qualquer resquício de luz do exterior.

“Esta divisão é... diferente,” murmurou Isabel, avançando lentamente, o olhar fixo nas prateleiras.

Pedro, mais cético, manteve-se perto da porta, o corpo tenso. “Aposto que há truques eletrónicos por trás disto. Mas não importa, não vou deixar-me impressionar por velhos livros.”

Enquanto Isabel percorria as prateleiras com os dedos, passando pelas lombadas dos livros antigos, algo a fez parar de súbito. Um livro destacava-se, não pelo seu aspeto, mas por algo mais subtil – um leve brilho, quase impercetível, emanava da sua capa de couro negro. Não resistiu. Puxou-o da prateleira e abriu-o lentamente.

“O que é isso?” perguntou Clara, aproximando-se por curiosidade, o tom de voz nervoso.

“Parece um diário... ou um livro de rituais,” respondeu Isabel, folheando as páginas que estavam cobertas de uma caligrafia escura e irregular. As palavras eram antigas, algumas quase ilegíveis, mas uma coisa estava clara: a história que o livro contava não era de uma família comum.

“O dono desta mansão,” começou ela, enquanto lia em voz alta, “fez um pacto com... algo. Ele queria imortalidade, mas o preço foi mais alto do que esperava. Este livro fala de portais para o mundo dos mortos.”

Antes que pudesse continuar, um súbito som fez-se ouvir na sala. Pedro olhou em volta, nervoso, enquanto o ambiente parecia alterar-se. As estantes começaram a ranger como se estivessem a ceder sob uma pressão invisível. O vento inexistente moveu as cortinas e o som abafado de páginas a virarem-se soou por toda a biblioteca.

“Isso não é possível,” murmurou Pedro, tentando convencer-se a si mesmo de que nada do que via era real. Mas a tensão no ar dizia-lhe o contrário.

As palavras no livro começaram a mover-se. Isabel parou de ler e olhou para a página, incrédula. As letras contorciam-se e mudavam de lugar, como se o próprio livro estivesse vivo. De repente, as luzes dos candelabros apagaram-se, mergulhando a sala numa escuridão quase total. Apenas o brilho fantasmagórico do livro iluminava o rosto de Isabel, que começou a tremer. Clara, sentindo o perigo iminente, agarrou-lhe no braço.

“Isabel, pára de ler. Isto não está certo.”

Mas era tarde demais. As estantes começaram a ranger violentamente, os livros a cair das prateleiras como se fossem empurrados por mãos invisíveis. A própria estrutura da sala parecia contorcer-se, as paredes dobravam-se, como se algo dentro delas estivesse a tentar escapar.

Rui, que até então estivera em silêncio, deu um passo atrás. “Saiam daqui. Agora!”

O grupo correu em direção à porta, mas Isabel hesitou, os olhos ainda fixos no livro. Algo nela queria continuar, queria saber mais, como se o próprio conhecimento estivesse a chamá-la. Mas Lucas agarrou-lhe o braço com força. “Larga-o, temos de sair!”

Relutante, Isabel soltou o livro, que caiu no chão com um som oco. No momento em que o fez, o chão começou a rachar. Fendas finas espalharam-se rapidamente, criando um padrão estranho e ameaçador. Pedro gritou quando viu uma das estantes a inclinar-se na sua direção, caindo com um estrondo ensurdecedor. Conseguiu escapar por pouco, mas o terror estava estampado no seu rosto.

O brilho que emanava do livro abandonado intensificou-se, espalhando-se pelo chão em padrões arcanos, símbolos que Isabel reconheceu vagamente de antigas culturas, mas que aqui pareciam ganhar um novo significado – algo terrível estava a despertar.

As paredes começaram a tremer, como se a biblioteca estivesse a implodir sobre si mesma. Símbolos em vermelho começaram a aparecer nas paredes, escritos como por uma mão invisível, e o som de sussurros encheu a sala. Lucas, sempre o pragmático, agarrou Clara e Pedro, puxando-os para a porta. “Não há tempo! Temos de sair já!”

No momento em que o grupo atravessou a porta, as estantes desabaram com um estrondo, livros e pergaminhos a voar por toda a sala. O som ecoou pelo corredor, e a porta fechou-se com violência atrás deles, como se selasse algo terrível no seu interior.

Ofegantes, encontraram-se num novo corredor, mais sombrio do que os anteriores. Isabel, ainda a recuperar o fôlego, olhou para Lucas com um misto de pânico e arrependimento. “Devia ter largado o livro mais cedo. Sinto que fiz algo... algo que despertou esta casa.”

Lucas olhou para ela, os olhos frios e calculistas. “A questão é: o que mais há por trás disto? E como saímos daqui antes que seja tarde?”

O grupo ficou em silêncio, mas todos sabiam a verdade: a mansão estava a tornar-se mais viva, mais agressiva. E quanto mais avançavam, mais claro ficava que não estavam sozinhos.

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